sábado, 28 de janeiro de 2012

A MORTA de Kadu Veríssimo

(tema velório)

Personagem

Matilde

(Matilde vê através de um telão o seu próprio enterro, ela deitada no caixão, várias pessoas em volta chorando, flores...Matilde esta sentada em um banco que parece um banco de igreja, há uma grande porta dourada a sua esquerda , um grande telão na sua frente e muito gelo seco no chão)

Matilde
Eu acho muito engraçado isso, olha só quem ta chorando por mim, a tia Isaurinha...aquela desgraçada sempre me judiou, nunca gostou de mim e agora vem chorando essa lágrima de crocodilo? Falsa.... e quem é esse monte de gente? , tem gente que eu nem conheço...(olha pros lados) será que só eu morri hoje é? ...tô sozinha aqui nesse purgatório, com esse telão de Led só pra mim... mas não tem um controle remoto aqui...eu quero ver é minha novela, vou querer ver meu próprio enterro? Eu não... (grita) Ô , alguém aí? Troca de canal pra mim... troca...tá muito chato isso... não tem ninguém pra me atender aqui...vou ter que ficar esperando o que?

(a imagem no telão fica turva)

Matilde
Olha, me ouviram...será que vai passar a novela hein...

(no telão aparece Matilde roubando coisas no mercado)

Matilde
Que isso? Filmaram isso? Mas não tinha nem câmera naquela época...

(a imagem muda, aparece Matilde com um homem na cama)

Matilde
Sérgio? Quanto tempo...

( no telão aparece Sérgio pulando a janela e o marido de Matilde entrando no quarto)

Matilde
Mas será possível? Só vai passar as coisas ruins que eu fiz na vida...e as coisas boas cadê? Não passa nada? Mostra aí alguma coisa boa que eu fiz na vida, mostra...

(o telão fica como se estivesse fora do ar, com as listras coloridas)

Matilde
Mas que sacanagem.. eu tô morta e não me aparece ninguém...cade os anjos? Os querubins? Pensei que chegando no céu teria um monte deles tocando a corneta pra mim...
Mas não tem nada...nem ninguém...O inferno é que não pode ser, assim tão tranqüilo, o inferno era lá onde eu vivia ah sim, aquilo que era um inferno, quem pega ônibus cansado na volta do trabalho, lotado, com um suvaco fedido bem na tua cara, algum safado te passando o pinto, ou tentando roubar sua bolsa, sabe bem o que é o inferno...e isso aqui não ta com cara de inferno... viu...eu sofri muito, ta escutando...mostra aí aguma coisa do meu sofrimento...

(continua fora do ar)

Matilde
Eu não sei o que fazer?, não sei pra onde eu vou?O que eu faço?Não tem uma cartilha, um manual de instruções nada, não sei o que fazer...vou esperar...Ainda bem que morri com essa bolsa, porque nela tem tudo o que eu preciso pra esperar nem sei o quê...Essa barrinha de cereais é salvadora, to morta , mas to com fome, como é que pode isso?Ela sempre ficou aqui na bolsa, sempre, deve estar até vencida, mas agora isso não tem um pingo de importância...(come), sempre carrego uma barrinha na bolsa, pra um momento de fome...sempre foi essa mesma, porque sempre quando estava com fome, nunca comia ela, parava numa padaria e mandava ver...porque isso aqui não mata a fome de ninguém, ah não mata...
Eu morri do que mesmo? Será que foi de fome?Não pode ser...eu não consigo lembrar...só sei que estou morta...isso eu sei...

(o telão funciona)

(aparece um anjo de graça com outro anjo)

Matilde
Gente? Que isso? Que pouca vergonha...

(os anjos através do telão olham pra ela, e sem graça saem voando)

Mas ninguém vai me dizer nada, vou ficar aqui esperando, volta pro meu velório então , se não vou dormir aqui...

(telão mostra velório)

Mas já foi quase todo mundo embora...quem é aquela ali...

(aparece uma menina no cantinho, chorando)

Eu não me lembro dela...e ela ta chorando ... quem é ela?

(a menina olha pra Matilde)

Mas ela ta olhando pra cá, como assim será que ela ta me vendo?
Quem é essa menina ? quem é?

( a menina vai se aproximando do caixão, olha para os lados e arranca as jóias e anéis da defunta, vê que não tem ninguém olhando abre a boca da morta e arranca os dentes de ouro)

Matilde
Mas que filha da puta, ela tá me roubando... de que igreja essa desgraçada é...

(põe a mão na boca)

Tô banguela, a filha da puta vai me deixar banguela na eternidade, nunca mais vou sorrir pra ninguém, e quando encontrar São Pedro? , a Nossa Senhora? , como vou pedir a benção? , não vou poder sorrir pra Virgem Maria?

( repara que esta sem jóia também)

(grita)

Minhas jóias, olha isso, to me sentindo nua, mas nem na eternidade a gente descansa... queria estar morta pra não ter visto isso... e nada de alguém chegar...nada se resolve...será que vou ficar aqui pra sempre gente...

(luz vai baixando)

Matilde
Como assim essa cena vai acabar sem resolver nada da minha morte... pode jogar uma luz aí, nada de Black-Out...

(luz vai morrendo mais)

Matilde
Não me deixa aqui sem resolver meu problema por favor, pra onde eu vou? , o que vai ser de mim? Eu vou reencarnar? Vou voltar como rainha? Piranha? Cachorro?  Acende essa luz acendeeeeee !!!!!!!!!!

(grita)

Matilde
Eu vou voltar pra puxar teu pé, por favor, não me deixa nessa dúvida , o que vai ser a minha vida? , quer dizer a minha morte?

(telão apaga, Black-Out)

Matilde
Filho da puta!

Nenhum comentário:

Postar um comentário