segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SERVIÇO DE PRIMEIRA de Ronaldo Fernandes

Tema: Velório



Som de telefone. Entra Rivalda correndo. Atende-o.

RIVALDA: Alô. Sim. É daqui mesmo. Não diga. Quando foi? Nossa ainda está fresquinho. Desculpe o jeito de falar. Claro. Claro. Aqui nós temos diversos kits e é o freguês quem escolhe.  Sim. Tudo depende de quanto se pode pagar. Nessas horas ninguém está preparado... A gente passa uma vida poupando para aproveitar. Entendo. Quantos anos? Desculpe a pergunta, mas é que alguns kits não combinam com pessoas muito idosas. É que quando se é jovens é mais dolorido. Sim. Entendo. Entendo mesmo. É um momento único na vida da gente.  OK. Só um minuto que vou pegar a agenda para anotar o pedido e a hora. Só um minuto, por favor. (Grita) Ô Elaine, Elaine. Elaine você está me escutando?
ELAINE: (Fora da cena) Só um minuto que to no banheiro.
RIVALDA: Isso são horas de ir ao banheiro?
ELAINE: Como eu seu mandasse no meu fiof... Nada...
RIVALDA: É número dois?
ELAINE: Não. É merda mesmo!
RIVALDA: Que grosseria.
ELAINE: Espera um pouco que to só me limpando. Já vou.
RIVALDA: (Voltando ao telefone) Só um minuto, por favor. Fique tranquila que nosso serviço é de primeira. Só estou pegando a agenda e vendo se tem espaço na data que a senhora precisa... Claro. Claro. Eu entendo. É momento muito importante na nossa vida, por isso prestamos sempre o melhor serviço. Somos certificadas pela ISSO 9000.

Entra Elaine.

ELAINE: Que foi? O que tu quer?
RIVALDA: (Ainda ao telefone) Claro senhora. Claro. Só um minutinho. (Para Elaine) Pega a agenda porque temos uma encomenda.
ELAINE: Mas nós estamos lotadas.
RIVALDA: Pega lá e não discute. Que merda.
ELAINE: Nossa como está bravinha.
RIVALDA: Vai lá e pega a merda da agenda.

Elaine sai.

RIVALDA: (Voltando ao telefone) Não chore fofa. Não chore. Isso é da vida. Dói, mas a gente acostuma.

Volta Elaine com a agenda e caneta.

ELAINE: Aqui está a agenda.
RIVALDA: (Ao telefone) Pra quando? Amanhã às três horas?
ELAINE: Da tarde ou da madrugada?
RIVALDA: (Ao telefone) Da tarde ou de madrugada? Da tarde.
ELAINE: (Olhando a agenda) Só tem pras quatro.
RIVALDA: (Ao telefone) Só tem pras quatro. Pode ser? Pode então? OK.
ELAINE: (Marcando na agenda) Tá marcado?
RIVALDA: (Ao telefone) Qual o endereço? Rua dos ingleses, número 33.
ELAINE: (Marcando na agenda) Rua dos ingleses, número 33.
RIVALDA: (Ao telefone) Claro que sabemos. Nós estamos ai dia sim, dia não. Esse local é muito procurado.
ELAINE: Pergunta logo o nome do que fez a passagem. Que saco.
RIVALDA: (Ao telefone) Querida eu preciso perguntar... Quem fez a passagem? Qual o nome? Ah são dois. É um casal.
ELAINE: Fala então que o valor é dobrado.
RIVALDA: (Ao telefone) Temos que cobrar por dois. Absudo que nada. Sendo dois velórios, temos que cobrar dois serviços.
ELAINE: Claro. Se forem dois mortos, temos que cobrar por dois. Olha só a folgada.
RIVALDA: (Ao telefone) Podemos até negociar um desconto, mas a taxa é pra dois mortos. Por favor...
ELAINE: Que saco. Manda parar de chorar e dá logo o nome dos que fizeram a passagem. Esse povo chora. A morte faz parte da vida. Uns nascem e outros morrem.
RIVALDA: (Ao telefone) Eu entendo querida que é um momento de dor, mas esse é nosso ganha pão, se vamos chorar pra dois mortos, temos que cobrar por dois... Sim. Isso mesmo. Nós temos três kits: Choro contido com soluço. Choro desesperado com gritos. E choro desesperado seguido de desmaio...
ELAINE: Com desmaio é o mais caro e fala que tem que ter espaço. Dá ultima vez, quando fui desmaiar o espaço era tão pequeno que bati com a cabeça numa pilastra e chorei de verdade, de tanta dor que senti.  Puta que pariu.
RIVALDA: (Ao telefone) O choro contido com soluço custa duzentos reais, mas pra senhora pode ficar por trezentos, já que são dois. Nós ficamos por volta de uma hora. Chegamos, cumprimentamos todo mundo que está por ali, depois nos dirigimos às beiradas do caixão, olhamos bem firme pro morto e começamos a chorar baixinho, bem baixinho, depois o choro se transforma em soluços. Sim. Sim. É bem convincente.
ELAINE: Convincente? Fala pra ela que temos registro profissional.
RIVALDA: (Ao telefone) Temos DRT sim. DRT é o registro para atrizes...
ELAINE: Fizemos banca e tudo.
RIVALDA: (Ao telefone) O choro desesperado com grito está por quatrocentos reais, mas pra senhora sai por seicentos... Ué por que são dois lembra?
ELAINE: Não acredito que ela tá achando caro.
RIVALDA: (Ao telefone) Nós ficamos por volta de hora e meia...
ELAINE: É que a preparação desse leva mais tempo, afinal a dor da perda vai num crescendo.
RIVALDA: (Ao telefone) É que esse antes passa pelo choro contido com soluços. É o mesmo processo, só um pouco mais demorado porque precisamos estar muito emocionadas... E o último é o choro desesperado seguido de desmaio que está saindo por oitocentos reais. Nossa. Esse é muito dolorido. Muito. A senhora precisa ver como as pessoas ficam tocadas. ELAINE: Oitocentos reais para um só.
RIVALDA: (Ao telefone) Oitocentos é pra um só. Pra senhora, que são dois mortos, podemos fechar por um mil e quatrocentos...
ELAINE: Não acredito que ela tá achando caro.
RIVALDA: (Ao telefone) Esse é o mais caro porque é que leva mais tempo. Da chegada até o desmaio tem um tempo de concentração grande.
ELAINE: É um tal de trazer água com açúcar, calmante... Da ultima vez tomei um rivotril e comecei a achar que o morto era meu primo. Fico louca. Comecei gritar, chorar, até que desmaie e me levaram para santa casa.
RIVALDA: (Ao telefone) Sim. A senhora entendeu. O choro desesperado seguido de desmaio começa com o choro contido com soluços e passa pelo choro desesperado com grito...
ELAINE: Saímos exaustas. Por isso ele é mais caro. São duas horas de muita dor e sofrimento.
RIVALDA: (Ao telefone) Precisamos saber os nomes...
ELAINE: Como vamos gritar pela pessoa? É importante saber o nome. Lembra que eu gritava Eduardo no velório da Tamires?  Foi um mico.  Mas todo mundo que estava no velório entendeu por que era uma perda muito grande e eu estava muito transtornada. Me deram até um Valium.
RIVALDA: (Ao telefone) Nos apresentamos como primas. Geralmente como primas.  OK senhora. Então a senhora quer o choro desesperado seguido de desmaio?
ELAINE: Fala que tem que pagar cinquenta por cento antes.
RIVALDA: (Ao telefone) A senhora deposita a metade. Banco da cidade - agencia 33, conta 07328-6. E o restante pode parcelar em até três vezes no cartão de crédito. Então tá OK. Confirmado amanhã as quatro. Primeiro checamos o depósito e estando tudo certo, chegamos lá no horário. Sim. Somos extremamente pontuais. Vamos de preto sim senhora. Nos vemos amanhã na rua dos ingleses, número 33...
ELAINE: Qual o velório?
RIVALDA: (Ao telefone) Qual o velório? O de número quatro? OK. Faça o depósito dos setecentos reais e estaremos lá as quatro horas da tarde. Fique tranquila, somos muito discretas. Qual o seu nome? Vanda.
ELAINE: (Anota na agenda) Vanda.
RIVALDA: (Ao telefone) Vai depositar trezentos? Então... A senhora vai contratar só para um?  Nossa. As pessoas vão comentar.  Bom, nesse caso não podemos dar o desconto. O depósito deve ser de quatrocentos reais, pois o choro desesperado seguido de desmaio sai por oitocentos reais. Só dávamos o desconto se fosse pra dois.
ELAINE: Um dos mortos vai ficar sem choro? Credo. Que mulher sem coração.
RIVALDA: (Ao telefone) Tudo bem. Faça o deposito dos quatrocentos reais. Estamos aqui pra fazer nosso trabalho. Muito obrigada Dona Vanda. Fique tranquila. Nosso serviço é de primeira. Beijo. Pode ficar sossegada... Mas qual o nome do morto?
ELAINE: O nome do morto?
RIVALDA: (Ao telefone) Alô. Alô. Alô... IH, desligou.
ELAINE: Puta que pariu, vamos ter que improvisar.

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