segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O TEU AUDITÓRIO NÃO ME ALEGRA MAIS de Marcus Di Bello

TEMA: PROGRAMA DE AUDITÓRIO

(Quarto do casal. Ela penteia os cabelos enquanto ele bebe uma xícara de café. Chove lá fora. É possível ouvir as trovoadas. A televisão está ligada, na altura ideal para se ouvir apenas um zumzumzum)

ELE
O café acabou.
(Tempo. Ele olha fixamente para a xícara. Levanta a cabeça e a encara)
Você fica linda, assim, de perfil.

ELA
Tem mais.

ELE
Onde?

ELA
Ali.
(Aponta para um bule, que está ao lado da cama. Ele caminha devagar e enche a xícara)
Que horas são?

ELE
Cinco.
(Tempo. Ele bebe dois longos goles)
Você ainda tem aquela pinta atrás do pescoço?

ELA
Não.
(Tempo)
As pintas já não são as mesmas. Os cabelos também não. Só o café. O café continua igual.

ELE
(Bebe mais um longo gole)
O café ficou ótimo. Eu adoro o seu café.
(Tempo)

ELA
O que ‘tá passando?

ELE
Aquele programa de calouros.
(Ela sorri. Ele termina de beber o café. Deixa a xícara junto ao bule, anda lentamente até ela e a abraça. Ela estremece, vira o rosto, demonstra insatisfação. Ele volta para a cama)

ELA
Eu já fui estrela desse programa. Chamavam-me de Elisabete Cantora. Todo sábado eu me apresentava. O público gostava de mim. Eles gritavam “Elisabete, Elisabete”. Não sei por que me chamavam Elisabete. Faziam fila, queriam encostar em mim. Eu dormia em uma cobertura durante o resto da semana. Tinha uma mulher, chamada Edna, que cozinhava. Eu ficava trancada durante a semana inteira, me buscavam sábado pela manhã e então eu cantava no programa. O auditório aplaudia, o público nas casas assistia. Sabe quantos televisores existem nesse país? Muitos. Todos sabiam o meu nome. Eu era amada.
(Chorando baixo)

ELE
Dizem que é tudo armação.

ELA
E o que é a vida? É ou não é uma armação contra os mais pobres?
(Tempo)

ELE
Você fica linda contra a luz.

ELA
(Chorando mais)
Me aplaude.

ELE
Não.

ELA
Me aplaude.
(Ele balança a cabeça negativamente, visivelmente abatido.)
Eu estou mandando. Me aplaude.

ELE
Não, meu amor.
(Chora)
Não me pede isso.

ELA
(Gritando)
Me aplaude! Me aplaude! Seu desgraçado, me aplaude.
(Ele levanta, não aderindo à ideia. Anda até ela contra a própria vontade)
Me aplaude!
(Ele estapeia a cara dela. No mesmo momento a abraça, chorando. Tempo. Ela chora baixo)
Obrigada. Obrigada.
(É possível ouvir o som da televisão. O casal fica abraçado. A luz cai aos poucos)

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