terça-feira, 29 de novembro de 2011

JÚLIA de Marcus Di Bello

TEMA: NOVELA

(Interior de um quarto de menina. Uma cama muito bem arrumada e uma porta ao fundo.)

ANA
Júlia.
(Tempo)
Você consegue me ouvir?
(Tempo)
As coisas aqui em casa não andam bem. Mamãe foi internada de novo. Estou tão preocupada, Júlia. Sabe, eles não tratam bem os pacientes naquele lugar. Só tem gente malvada naquela clínica. Eu sei disso, eu vi em sonhos. Meus sonhos não mentem, você sabe. Ela pode estar sofrendo agora.
(Desvia o olhar).
É.
(Tempo)
Semana passada o vovô morreu. A família toda tá brigando pela herança agora. Eles nunca se importaram quando ele tava vivo, por que agora se importam? Não devia ser assim, Júlia. Quando uma pessoa morre, ela devia levar tudo com ela. Mesmo o que fosse ruim. Levando coisa ruim o mundo ficaria melhor. Levando coisa boa ninguém brigaria por herança.
(Tempo)
É, não faz muito sentido.
(Tempo)
Contar um sonho meu? É claro que eu conto. O de ontem foi bem legal, você vai gostar. Eu tava num gramado, muito verde. O céu brilhava tanto que chegava a doer a vista. Mas era bom, sabe. Então chegou um palhaço com um chapéu enorme, que dava umas cinco de você.
(Ri)
Ele era muito grande e tinha uma voz engraçada. Então ele falou “me abrace, diga coisas boas, fique aqui comigo”. Mas eu não fiquei. Eu disse “infelizmente não posso, seu palhaço, mas qualquer dia eu volto”. Então eu fui embora. Na saída tinha duas portas. Eu sabia que cada uma levava para um destino diferente. Aí eu acordei.
(Tempo)
Não sei qual escolheria. Achei estranho, porque a vida não dá apenas duas opções, não é, Júlia? Por que escolhemos entre extremos se entre eles existe algo? Eu sei que a vida não é assim. Eu vejo nas novelas.
(Tempo)
Sabe o que eu queria mesmo? Viver numa novela. Seria o máximo. Você não gostaria também? Já pensou em ter aqueles cafés-da-manhã enormes e sempre ser feliz no final. Seria bom se eu tivesse uma novela. “A Vida de Ana”. O que acha? Você também estaria na novela. Seria tão legal.
(Tempo)
Escrevi um poema, Júlia. Quer ouvir?
(Sorri)
Está bem
(Pega um papel dobrado)
Se alguém, um dia, me der amor
eu juro que adiciono uma letra
ou duas, transformando em clamor
porque amor não se aceita
amor se conquista
seja numa troca de olhares
seja nos versos de um artista.
(Tempo)
O que você achou? Bonito, né? Ah, você sempre soube que eu escrevia. Eu faço isso o tempo todo. É o momento em que eu viajo. É o momento em que sou completamente livre, o momento em que posso expressar o que sinto. Não existem limites na escrita. Ninguém te obriga a escolher uma porta, ninguém briga por herança. É quando posso ter uma vida de novela. É quando sou feliz.
(Tempo)
Claro que eu te ensino a escrever, Júlia. Quando você quiser! Vai ser um prazer enorme. Um dia eu te dou uma aula. Vai ser demais!
(Tempo)
Eu também te amo, Júlia.
(Batida na porta. Ana se assusta)
Deve ser papai.
(Outra batida)
Eu já estou indo dormir, pai.
(Desesperada. Black out. Ana começa a gritar. Barulho de cinto. De repente o barulho cessa e ouve-se o choro baixo da menina)

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